quinta-feira, dezembro 11, 2003

Sacudir a água do capote...

O Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. José Miguel Júdice, escreveu, há pouco, um artigo, espécie de carta aberta, em que comenta um acórdão do conselheiro Pires Salpico, respeitante a um pedido de recusa de juiz. Trata-se, a meu ver, de um documento deveras importante como contributo para a clarificação e melhoria da Justiça em Portugal, que, com humildade e bom senso, deveria ser motivo de séria reflexão, por parte da magistratura portuguesa. Com a devida vénia, atrevo-me a reproduzir textualmente uma súmula das considerações do Sr Bastonário, as quais, pela sua importância, são o dedo na ferida do muito que vai mal nos meandros da prática judiciária e faz com que, de momento, ela esteja tão desacreditada « o que escreveu o conselheiro Salpico é um exemplo de escola do que não deve ser uma sentença judicial, do que não deve ser a forma de relacionamento entre as profissões que constituem o judiciário, do que não deve ser o entendimento da função judicial, do que não deve ser a explicação para os atrasos da justiça e de insensibilidade aos princípios estruturantes do Estado de direito.».
Sem querer meter a foice em seara alheia, penso, porém, que estas judiciosas considerações ( sem qualquer ironia, mas, porque as considero assim, de facto) complementam as preocupações manifestadas pelo Sr. Presidente da República, o que deveria ser razão bastante para todos os que preocupam com o problema, fizessem todos os esforços no sentido de uma rápida e eficiente melhoria do sistema, antes que a desagregação se torne problemática. Dizemos que estamos num Estado de direito, mas os atropelos são tão grandes e tão seguidos que para o cidadão comum começa a haver a preocupante sensação de que há uma justiça para os ricos, para os poderosos, para os que têm poderes mediáticos e políticos e uma outra para os pobres e desprotegidos. É que há constatações de factos ocorridos nos últimos anos que ferem a mais elementar das lógicas de raciocínio: prescrições verdadeiramente escandalosas de crimes graves sem qualquer imputação de responsabilidades a quem quer que seja; decisões de tal modo arbitrárias que apontam de imediato para o recurso; prisões preventivas desproporcionadas e ao atropelo do que está consignado, etc. etc.
Culpa de quem? O Dr. José Miguel Júdice diz que sacode a água do seu capote. Provavelmente com razão. ( Que diferença do bastonário anterior! A este vejo-o numa acção altamente meritória de defender a sua classe, com isenção e justiça, prestando também o seu contributo empenhado em prol da dignificação do Estado de direito. Ao anterior poucas intervenções vi que não fossem de âmbito meramente partidário, servindo-se do lugar para atacar ou pôr em causa o governo e a política de então!)
Os magistrados e o Ministério Público dirão igualmente que a culpa é dos outros. Como, tanto uns como outros se sentem intocáveis nos seus pergaminhos ou se proferem acórdãos do teor do que deu origem ao artigo do Bastonário ou se arranja logo outra desculpa qualquer: funcionários pouco zelosos, excesso de trabalho, instalações degradadas ou insuficientes... o que importa é nunca se porem em causa. O Povo costuma dizer: «casa onde não há pão, todos ralham sem razão». Cuido que aqui o provérbio seria outro:«casa onde não há razão, perde-se a justiça, sobra a ralhação !».
Depois não fiquem ofendidos se se disser que também neste domínio somos um país do terceiro mundo!